Crianças viram alvo diretos de todo tipo de produto
Gonçalo Junior
A TV engorda. Principalmente as crianças, a faixa de público considerada a mais influenciável por especialistas em mídia e psicologia. Anúncios de salgadinhos, sanduíches, sorvetes e biscoitos não prometem apenas refeições saborosas, mas brindes como bichinhos de pelúcia, carrinhos ou bonecos do desenho animado do momento, que induzem a algo a mais: não basta comprar e saborear. É preciso comprar muito. Juntar cupons, tickets e códigos de barra, além de um complemento em dinheiro, às vezes. Se não bastasse, com a justificativa da diversidade de escolha, são oferecidas coleções extensas, o que obriga os pais a multiplicarem as compras.
Crescer na vertical ou para os lados? Nenhum desses comerciais traz anúncios sobre o valor nutritivo ou calórico dos alimentos. E o que fazer com tantos salgadinhos, sorvetes e sanduíches? Comer, ora. “Comer, comer, comer para poder crescer”, dizia um comercial. Assim, a obesidade infantil não tem a ver somente com estresse e falta de orientação alimentar dos pais. Está relacionada às estratégias de marketing da indústria de alimentos, cujos efeitos para a saúde da garotada podem ser devastadores.
Não por acaso, no dia 18 de julho passado, um grupo de empresas norte-americanas se comprometeu a assumir um comportamento mercadológico “socialmente responsável”. Dez das 11 maiores do setor de alimentos, que abocanham dois terços do mercado, prometeram restringir anúncios de alimentos dirigidos às crianças que não correspondam aos padrões nutricionais do Departamento de Agricultura, Saúde e Serviço Social dos EUA.
Em todo o país são 9 milhões de obesos em idade infantil. Sem contar outro bom número com peso acima da média. McDonald’s, Pepsi-Cola, Coca-Cola, Campbell’s, Cadbury Adams, Hershey’s, Kellogg’s, Kraft, Mars, Unilever e General Mills reconheceram que estão cientes do crescente problema da obesidade infantil no país. Algumas anunciaram ainda que tentarão modificar sua linha de produtos a fim de se adequar aos padrões nutricionais. Os especialistas acreditam que as empresas se anteciparam e adotaram medidas de auto-regulação por temerem uma lei de exclusão de suas publicidades, como aconteceu com a indústria do tabaco.
No Brasil, a preocupação com a obesidade infantil não é menor. Em São Paulo, 30% dos alunos da rede pública estão acima do peso. O bombardeio incansável das propagandas de alimentos na TV, direta ou indiretamente, levou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a fazer a consulta pública de número 71, no ano passado, sobre possíveis mudanças na veiculação de publicidade ao público infantil. Como tem poderes reguladores, a entidade discute no momento com ONGs, universidades e profissionais da saúde uma forma de restringir a publicidade de bebidas com baixo teor nutricional e alimentos com alto teor de sódio, açúcares e gordura em rádio e televisão no horário das 6 às 21 horas. Embora a publicidade não seja o único fator para a “epidemia” de crianças gordas, espera-se que a medida diminua o problema que virou questão de saúde pública.
A relação entre publicidade e peso físico, porém, é apenas um dos elementos que preocupam médicos, psicólogos, comunicólogos e acadêmicos de outras áreas, além de instituições que cuidam dos direitos e da saúde das crianças e do próprio governo federal. Pesquisa da TNS InterScience mostra que os gastos com crianças de 4 a 12 anos aumentaram pelo menos 400% desde 1989 e continuam crescendo. Outro estudo da mesma instituição, divulgada em agosto, feita com mães e filhos em cinco países latino-americanos – Brasil, Argentina, Chile, Guatemala e México –, mostrou que, se em 2005 42% desse público influenciava fortemente as compras familiares, em 2006 o porcentual pulou para 52%.
As facilidades de acesso à tecnologia e à informação são apontadas como causas para a mudança do perfil dessa faixa de consumidor nos últimos 20 anos. Expostas a estímulos de marketing cada vez mais de forma direta, sem a mediação do adulto, e bem informadas sobre detalhes de objetos de desejo, as crianças interferem na escolha de produtos a elas destinados, elegem categorias e até marcas para o segmento adulto.
Mais que isso, os pequenos consumidores querem mesmo é sair e comprar seus próprios itens de consumo. Foi o que revelou a pesquisa “Kids experts”, divulgada em julho, realizada no Brasil pelo grupo de comunicação Turner International Networks, responsável pelo canal infantil Cartoon Network. Foram ouvidas 1.066 crianças entre 7 e 15 anos e mapeado o comportamento dos consumidores infantis no país. Dentre os resultados, descobriu-se que 40% gostariam de ganhar dinheiro como presente, na ordem de preferência, em vez de citarem algum brinquedo.
A preocupação da criança como vítima da publicidade para consumo tem a ver com a sua fragilidade para perceber os propósitos por trás dos anúncios, uma vez que é um ser em formação. A psicóloga Ester Cecília Fernandes Baptistella, professora de educação e psicologia da Universidade São Francisco – onde realiza pesquisas sobre a compreensão do conteúdo televisivo na infância –, ressalta que desde os 6 meses de idade as crianças manifestam as primeiras condutas de atenção à televisão. As mudanças rápidas de imagem e som, sobretudo nos anúncios, e o próprio formato da televisão são apontados como motivadores para os bebês. Não significa que sejam capazes de compreender uma narração televisiva ou a intenção de um anúncio publicitário.
Sergio Marin, consultor independente e professor da Universidade Anhembi Morumbi e Centro Universitário UniFieo, acrescenta que crianças com apenas 3 anos de idade já entendem o valor do dinheiro e têm uma noção muito clara que ele representa um meio de troca. Em sua tese de doutorado, ele estudou os aspectos motivacionais que embasam o comportamento de consumo infantil – e que dá suporte às práticas promocionais dirigidas à criança. Submetida a tamanha pressão, observa ele, a criança faz da aparência e do consumo dos meios de comunicação elementos para ser aceita.
O objetivo da propaganda dirigida é causar impacto na turma com quem essa criança convive e gerar satisfação pessoal. Segundo ele, os menores de 3 a 6 anos não têm noção de caro/barato, são altamente impulsivos e usam o dinheiro para comprar jogos e doces. Os de 7 a 9 anos sabem o que é caro/barato, planejam, calculam, negociam e utilizam o dinheiro para comprar roupas de marca, MP3, celulares e jogos eletrônicos. “Eles percebem o impacto das marcas e também conhecem e se interessam por categorias destinadas a outros segmentos.”
Ester Cecília defende a necessidade atual de educar as crianças e adolescentes para a mídia como forma de ensiná-los a exercer sua cidadania. No momento, ela faz um trabalho de alfabetização televisiva como parte do projeto de sua tese de doutorado, que desenvolve na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com orientação de Orly Zucatto Mantovani de Assis. A psicóloga defende a compreensão da linguagem televisiva e a necessidade do uso pedagógico da TV em sala de aula. Assim, propicia ao aluno a vivência de situações com a mídia que o tornem mais crítico e menos vulnerável à propaganda para consumo.
Não é fácil precisar o momento exato em que a criança começou a ser cobiçada pela publicidade televisiva. Aldo Pontes, doutorando em educação e comunicação (FE-USP) e autor organizador dos livros Infância, cultura e mídia e Construindo saberes em educação (Editora Zouk), concorda que esse fenômeno teve início na década de 1980. É a partir desse momento que a indústria de cultura passa a conceber o público infantil enquanto faixa de consumidor potencial. Não demorou para que uma infinidade de programas, produtos e serviços passassem a ser veiculados na programação da telinha.
Para situar, ele recorda que são dessa época atrações infantis como: Bozo (TVS), TV criança (Bandeirantes), Clube da criança (extinta Manchete), Balão mágico (Globo), TV Fofão (Bandeirantes), Xou da Xuxa (Globo) etc. “Não podemos esquecer que apesar de a televisão ser uma concessão pública a maioria das empresas radiodifusoras são privadas, independentemente de serem abertas ou de sistemas de TV por assinatura.” Dessa forma, acrescenta ele, “o que acaba preponderando são as estratégias de propaganda e marketing para manter os altos índices de audiência, mesmo quando se trata do telespectador infantil”.
Culturalmente, destaca Pontes, edificou-se nas sociedades capitalistas liberais contemporâneas uma cultura de que é preciso ter para ser, na qual as crianças começam a ser alvo muito cedo. “Em outras palavras, somos ‘programados’ para atrelar produtos a sensações de bem-estar abstratas como felicidade, gozo, realização, paz de espírito.” Inseridas nesse contexto, prossegue Pontes, as crianças, a exemplo do que ocorre com os adultos, acabam sucumbindo ao consumo, geralmente de forma inconsciente, para serem também aceitas e escaparem da exclusão que vitima os que não podem comprar.
Esse comportamento pode ser observado no cotidiano escolar. O pesquisador lembra que precisa apenas que um do grupo vá para a escola com uma mochila, um tênis, um fichário de uma marca que está em alta para os outros quererem também. Pontes conta que, na disciplina de educação e comunicação, que ministra no curso de pedagogia, é bastante corriqueiro chegarem histórias de crianças que, de tão ansiosas para terem algo que geralmente os pais não poderiam lhes dar, acabaram ficando até mesmo doentes.
Nessa perspectiva, as empresas não medem esforços para abocanhar o público infantil que vai além dos horários comerciais, diz Pontes. Ele cita filmes “ultra” animados e coloridos, mascotes, inserção de personagens humanos em personagens de desenhos animados, promoções e concursos. O pesquisador coloca sob suspeita as coleções de bichinhos, figurinhas e outros objetos que vêm dentro das embalagens de lanches tipo fast-food, salgadinhos, doces. “Esse recurso coage as crianças a consumirem o produto apenas para completar as coleções, que, com o tempo, logo são substituídas por outras e outras.”
As crianças, às vezes, são usadas como iscas para pegar os pais. Um estudo de James McNeal citado por Pontes verificou a existência de três grupos de consumidores infantis: a criança como consumidora primária, que consome produtos criados para a sua faixa etária; a criança como influenciadora do consumo dos adultos; e, por último, a criança como mercado futuro, consumidor do futuro. “O grupo das que persuadem seus pais/responsáveis ao consumo é um dos que mais crescem, pois, na ausência dos pais/responsáveis, os filhos sofrem um verdadeiro bombardeio publicitário, assim consomem uma enxurrada de anúncios que, como uma lavagem cerebral, são exibidos inúmeras vezes, tanto nos intervalos quanto no bloco dos programas (merchandising)”, justifica o pesquisador brasileiro.
Dentre as estratégias mais comuns para induzir ao consumo no horário comercial, Carlos André Migliorini, coordenador de consumo e pesquisa do projeto Criança e Consumo da ONG Instituto Alana, destaca três: a publicidade convencional; o licenciamento de personagens do cinema, dos desenhos animados e dos quadrinhos para atrelar sua imagem ao produto; e brindes nos postos de venda – que, às vezes, exigem complemento em dinheiro.
Com voluntários em todo o país, o instituto age como órgão fiscalizador e chega a enviar reclamações extrajudiciais a emissoras, anunciantes e agências. Em casos extremos, formaliza denúncia ao Ministério Público. Além de manter um centro de pesquisa e referência, o Alana também faz acompanhamento nos três Poderes para propor projetos e dar suporte técnico.
Migliorini aponta ainda as conseqüências de se ter em casa crianças com descontrole consumista: aumenta o estresse familiar porque nem sempre se pode atender a uma vontade do filho; desequilíbrio no orçamento; diminuição das brincadeiras, conseqüente vida sedentária e tendência à obesidade; aumento da violência de quem não pode comprar; em longo prazo, posturas de conformismo, individualismo e egoísmo. Ao mesmo tempo, existem pais que recorrem à compra de presentes como forma de compensar a ausência imposta pela carreira profissional.
O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) tem preocupação semelhante em relação às crianças. Tanto que produziu, em parceria com a ONG Criança Segura e a Fundação Abrinq, o guia Essa turma ninguém passa para trás, lançado em março deste ano. Os alvos são as crianças e adolescentes entre 11 e 14 anos, considerados consumidores cada vez mais ativos e decididos. Em linguagem acessível, a cartilha utiliza crianças como personagens, ilustrações e situações do dia-a-dia como exemplos para transmitir conceitos de consumo responsável e sustentável, noções de direitos do consumidor e segurança no consumo de bens e serviços.
A coordenadora executiva do Idec e presidente da Consumers International, Marilena Lazzarini, afirma que o instituto tem investido na educação para o consumo na sala de aula, na faixa da quinta a oitava séries, com a incorporação de temas para discussão nas disciplinas curriculares. Como exemplo, o debate sobre os juros abusivos nas aulas de matemática ou de consumo sustentável em geografia. Como parte do programa, em 2002, o Idec lançou quatro livros para professores. “Fazemos isso dentro das perspectivas de ver o consumo de forma ampla, e não apenas restrito ao Código do Consumidor”, justifica.
Revista da FAPESP
http://www.revistapesquisa.fapesp.br/
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