quarta-feira, 28 de maio de 2014

FAMÍLIA, ONDE ESTÁS?

Por Bispo Emérito, Paulo Ayres Mattos extraído do Expositor Cristão de fevereiro de 2000

Em conversa com membros de nossa Igreja, foi-me perguntado, certa vez, por que certas famílias que não são evangélicas vivem de forma feliz, enquanto muitas de nossas famílias enfrentam situações bastante difíceis e até mesmo trágicas. É verdade que muitas vezes nos deparamos com situações que nos deixam bastante intrigados: pessoas não cristãs, e nem mesmo religiosas, experimentam uma vivência familiar de forma bem estruturada, digna e feliz, num ambiente onde é possível desenvolver-se relacionamentos de amor, respeito mútuo, confiança e solidariedade.
O que nos deixa de certa forma curiosos, diante de tal situação, é que não tendo valores e referencias religiosos para sua vida familiar, aquelas pessoas podem realizar, de maneira bem sucedida, muitas das vivencias que as famílias cristãs, ainda que as aspirem, não conseguem concretizá-las no seu dia-a-dia. Como pode isto acontecer?
Não seria impossível para elas, pela falta de tais valores, a construção de relacionamentos que nós, pessoas religiosas, consideramos o ideal para uma família cristã?
E por que nós, que temos no Evangelho a constante inspiração para experimentar em todos os nossos relacionamentos o amor manifesto em Cristo, temos que enfrentar muitas vezes o fracasso de nossas famílias “cristãs”?
Ora, não é verdade que a vida em família é umas das mais constantes experiências humanas em qualquer época e lugar? Em que pese as mais diferentes maneiras de sua organização social e cultural, de padrões éticos e políticos, de formação espiritual e religiosa, a experiência humana de família praticamente está presente em todos os momentos da humanidade. Todos os povos, raças e nações, para sua própria sobrevivência material e espiritual, tiveram de desenvolver relacionamentos entre mulheres, homens, crianças, jovens, adultos e idosos que genericamente conhecemos como família.
Em qualquer quadrante da terra, os seres humanos foram levados, de uma forma ou de outra, a se estruturaram em família de maneira mais ou menos organizada ou institucionalizada. Não temos como escapar desta realidade presente em praticamente todas as comunidades de humanos, baseando-se em valores, nem sempre compartilhados por outros grupamentos humanos, as comunidades desenvolveram valores éticos e religiosos com o objetivo de proteger e reforçar a vivência da família como algo imprescindível à sua própria existência comunitária e individual. É em tais valores que os indivíduos encontram o sentido para sua própria vida.
Constituem famílias, ainda em nossos dias, no Oriente e no Ocidente, pobres e ricos, amarelos, negros e brancos, religiosos e não-religiosos, analfabetos e doutores, nas cidades e nos campos. Há uma força maior que nós mesmos como indivíduos, até mesmo segundo a diferentes, contraditórios e antagônicos valores, nos levam a formar a família. Mesmo quando é comum dizer-se hoje que a família está em crise, superada e abandonada, desestruturada ou corrompida não conseguimos evitar sua formação. Como seres humanos, no fundo de nosso íntimo, às vezes de forma até inconsciente, desejamos ter uma família onde podemos amar e nos sentir amados. Se assim não fosse, como poderíamos explicar um impulso quase irresistível que as pessoas descasadas têm para se casar novamente?
Devemos, é verdade, reconhecer que, como instituição social, nem sempre a família vai bem. As chamadas “rápidas transformações sociais” experimentadas por quase toda humanidade, trouxeram impactos tremendos sobre a família tradicional. Já não é mais possível manter-se os valores, critérios e padrões próprios da família patriarcal. O mundo de relações patriarcais vai ficando rapidamente para trás; entretanto, ele continua dentro cada um de nós. Esta é a família que está em crise. Queremos viver em família, mas não sabemos como!
Se buscarmos na Bíblia, como evangélicos que somos, orientação para vivermos nossos relacionamentos familiares, entendemos que, em sua origem, a família não é uma instituição humana que se limita a uma determinada raça, cultura ou religião. Toda a humanidade está chamada por Deus a compartilhar da vida familiar. Para a Bíblia, a família independentemente de sua organização sócio-cultural é um dos relacionamentos humanos estabelecidos por Deus antes mesmo do pecado entrar no mundo. Diferentemente de outras instituições humanas, como as religiosas e as políticas, que vieram a existir para ajudar a humanidade a lidar com a realidade do pecado, a vivência familiar já estava determinada nos propósitos divinos no ato da criação: E disse Deus: façamos o ser humano (sentido original do termo em hebraico) à nossa imagem e semelhança; homem e mulher os criou”. Segundo o primeiro capítulo de Gênesis, a existência humana foi desde o seu início comunitária em torno da bipolaridade homem-mulher e que precisa ser compartilhada por suas gerações vai além de seu conteúdo biológico, para se tornar manifestação da imagem e semelhança do próprio Deus em seu espírito Criador. Por isso, ainda que também afetada pela realidade de nossas fraquezas e limitações humanas, entendidas teologicamente como decorrentes da experiência do pecado, ”constituem famílias, ainda em nossos dias, no Oriente e no Ocidente, pobres e ricos, amarelos, negros e brancos, religiosos e não-religiosos, analfabetos e doutores, nas cidades e nos campos”.
Diante de tal compreensão bíblica-teológica não devíamos, portanto, ficar intrigados ou mesmo supresos quando víssemos mulheres e homens, idosos, jovens e crianças experimentando relações familiares produtoras de vivências de felicidade, carinho e amor apesar de sua vida não-religiosa. Se assim acontece, é porque em qualquer relacionamento familiar em que os participantes estão emocionalmente dispostos a viver em beneficio da felicidade do outro, e não somente de si próprio (relações de amor-solidário e não-egoísta), aí está presente o espírito Criador de Deus. Esta é uma questão que, pela iniciativa do próprio Deus, se dá dentro daquilo que certos teólogos denominam “ordem da criação”, isto é, dentro do âmbito das relações morais que valem para todos os seres humanos independentemente da necessidade de uma revelação especial como temos em Jesus Cristo (ordem da salvação), conforme Atos 14:15-17 e Romanos 1:20.
E é por isso mesmo que Jesus vai a Caná da Galiléia a um casamento, sem qualquer ato ou atitude religiosa, e faz o seu primeiro milagre (sinal messiânico em João) somente para garantir a alegria daquele momento familiar.
Mas tal entendimento significa para nós que a “ordem da salvação”, isto é, o fato de termos em Jesus Cristo nosso referencial de vida baseado nos valores do Reino de Deus, não tem implicações para a vivência familiar? Certamente de modo nenhum!
O fato que “constituem famílias, ainda em nossos dias, no Oriente e no Ocidente, pobres e ricos, amarelos, negros e brancos, religiosos e não-religiosos, analfabetos e doutores, nas cidades e nos campos” não significa que o sermos novas criaturas em Cristo não importa para a constituição de nossas famílias. Importa sim, e muito!
Os valores do Reino de Deus reforçam e fortalecem aquela dimensão moral do amor-solidário que está presente nas vivências familiares que se dão mesmo fora âmbito da “ordem da salvação”. Aqui, podemos parafrasear com humildade e sem preconceitos o dito de Jesus: “se vossa justiça não exceder a dos fariseus....”
Se é possível mesmo fora da “ordem da salvação”, vivenciar-se o amor-solidário na vida familiar, quanto mais deve ser para aquelas pessoas que confessam Jesus Cristo como Senhor e Salvador, aquele que é a maior manifestação desse amor, sinal da presença de Deus entre todos os seres humanos!


FONTE: http://1re.metodista.org.br/conteudo.xhtml?c=2381

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