Por Bispo Emérito, Paulo Ayres Mattos extraído do Expositor Cristão de fevereiro de 2000
Em conversa com membros de nossa
Igreja, foi-me perguntado, certa vez, por que certas famílias que não são
evangélicas vivem de forma feliz, enquanto muitas de nossas famílias enfrentam
situações bastante difíceis e até mesmo trágicas. É verdade que muitas vezes
nos deparamos com situações que nos deixam bastante intrigados: pessoas não
cristãs, e nem mesmo religiosas, experimentam uma vivência familiar de forma
bem estruturada, digna e feliz, num ambiente onde é possível desenvolver-se
relacionamentos de amor, respeito mútuo, confiança e solidariedade.
O que nos deixa de certa forma
curiosos, diante de tal situação, é que não tendo valores e referencias
religiosos para sua vida familiar, aquelas pessoas podem realizar, de maneira
bem sucedida, muitas das vivencias que as famílias cristãs, ainda que as aspirem,
não conseguem concretizá-las no seu dia-a-dia. Como pode isto acontecer?
Não seria impossível para elas,
pela falta de tais valores, a construção de relacionamentos que nós, pessoas
religiosas, consideramos o ideal para uma família cristã?
E por que nós, que temos no
Evangelho a constante inspiração para experimentar em todos os nossos
relacionamentos o amor manifesto em Cristo, temos que enfrentar muitas vezes o
fracasso de nossas famílias “cristãs”?
Ora, não é verdade que a vida em
família é umas das mais constantes experiências humanas em qualquer época e
lugar? Em que pese as mais diferentes maneiras de sua organização social e
cultural, de padrões éticos e políticos, de formação espiritual e religiosa, a
experiência humana de família praticamente está presente em todos os momentos
da humanidade. Todos os povos, raças e nações, para sua própria sobrevivência
material e espiritual, tiveram de desenvolver relacionamentos entre mulheres,
homens, crianças, jovens, adultos e idosos que genericamente conhecemos como
família.
Em qualquer quadrante da terra,
os seres humanos foram levados, de uma forma ou de outra, a se estruturaram em
família de maneira mais ou menos organizada ou institucionalizada. Não temos
como escapar desta realidade presente em praticamente todas as comunidades de
humanos, baseando-se em valores, nem sempre compartilhados por outros
grupamentos humanos, as comunidades desenvolveram valores éticos e religiosos
com o objetivo de proteger e reforçar a vivência da família como algo imprescindível
à sua própria existência comunitária e individual. É em tais valores que os
indivíduos encontram o sentido para sua própria vida.
Constituem famílias, ainda em
nossos dias, no Oriente e no Ocidente, pobres e ricos, amarelos, negros e
brancos, religiosos e não-religiosos, analfabetos e doutores, nas cidades e nos
campos. Há uma força maior que nós mesmos como indivíduos, até mesmo segundo a
diferentes, contraditórios e antagônicos valores, nos levam a formar a família.
Mesmo quando é comum dizer-se hoje que a família está em crise, superada e
abandonada, desestruturada ou corrompida não conseguimos evitar sua formação.
Como seres humanos, no fundo de nosso íntimo, às vezes de forma até
inconsciente, desejamos ter uma família onde podemos amar e nos sentir amados.
Se assim não fosse, como poderíamos explicar um impulso quase irresistível que
as pessoas descasadas têm para se casar novamente?
Devemos, é verdade, reconhecer
que, como instituição social, nem sempre a família vai bem. As chamadas
“rápidas transformações sociais” experimentadas por quase toda humanidade,
trouxeram impactos tremendos sobre a família tradicional. Já não é mais
possível manter-se os valores, critérios e padrões próprios da família
patriarcal. O mundo de relações patriarcais vai ficando rapidamente para trás;
entretanto, ele continua dentro cada um de nós. Esta é a família que está em
crise. Queremos viver em família, mas não sabemos como!
Se buscarmos na Bíblia, como
evangélicos que somos, orientação para vivermos nossos relacionamentos
familiares, entendemos que, em sua origem, a família não é uma instituição
humana que se limita a uma determinada raça, cultura ou religião. Toda a
humanidade está chamada por Deus a compartilhar da vida familiar. Para a
Bíblia, a família independentemente de sua organização sócio-cultural é um dos
relacionamentos humanos estabelecidos por Deus antes mesmo do pecado entrar no
mundo. Diferentemente de outras instituições humanas, como as religiosas e as
políticas, que vieram a existir para ajudar a humanidade a lidar com a
realidade do pecado, a vivência familiar já estava determinada nos propósitos
divinos no ato da criação: E disse Deus: façamos o ser humano (sentido
original do termo em hebraico) à nossa imagem e semelhança; homem e mulher os
criou”. Segundo o primeiro capítulo de Gênesis, a existência humana
foi desde o seu início comunitária em torno da bipolaridade homem-mulher e que
precisa ser compartilhada por suas gerações vai além de seu conteúdo biológico,
para se tornar manifestação da imagem e semelhança do próprio Deus em seu
espírito Criador. Por isso, ainda que também afetada pela realidade de nossas
fraquezas e limitações humanas, entendidas teologicamente como decorrentes da
experiência do pecado, ”constituem famílias, ainda em nossos dias, no
Oriente e no Ocidente, pobres e ricos, amarelos, negros e brancos, religiosos e
não-religiosos, analfabetos e doutores, nas cidades e nos campos”.
Diante de tal compreensão
bíblica-teológica não devíamos, portanto, ficar intrigados ou mesmo supresos
quando víssemos mulheres e homens, idosos, jovens e crianças experimentando
relações familiares produtoras de vivências de felicidade, carinho e amor
apesar de sua vida não-religiosa. Se assim acontece, é porque em qualquer
relacionamento familiar em que os participantes estão emocionalmente dispostos
a viver em beneficio da felicidade do outro, e não somente de si próprio
(relações de amor-solidário e não-egoísta), aí está presente o espírito Criador
de Deus. Esta é uma questão que, pela iniciativa do próprio Deus, se dá dentro
daquilo que certos teólogos denominam “ordem da criação”, isto é, dentro do
âmbito das relações morais que valem para todos os seres humanos
independentemente da necessidade de uma revelação especial como temos em Jesus
Cristo (ordem da salvação), conforme Atos 14:15-17 e Romanos 1:20.
E é por isso mesmo que Jesus vai
a Caná da Galiléia a um casamento, sem qualquer ato ou atitude religiosa, e faz
o seu primeiro milagre (sinal messiânico em João) somente para garantir a
alegria daquele momento familiar.
Mas tal entendimento significa
para nós que a “ordem da salvação”, isto é, o fato de termos em Jesus Cristo
nosso referencial de vida baseado nos valores do Reino de Deus, não tem
implicações para a vivência familiar? Certamente de modo nenhum!
O fato que “constituem
famílias, ainda em nossos dias, no Oriente e no Ocidente, pobres e ricos,
amarelos, negros e brancos, religiosos e não-religiosos, analfabetos e
doutores, nas cidades e nos campos” não significa que o sermos novas
criaturas em Cristo não importa para a constituição de nossas famílias. Importa
sim, e muito!
Os valores do Reino de Deus
reforçam e fortalecem aquela dimensão moral do amor-solidário que está presente
nas vivências familiares que se dão mesmo fora âmbito da “ordem da salvação”.
Aqui, podemos parafrasear com humildade e sem preconceitos o dito de Jesus: “se
vossa justiça não exceder a dos fariseus....”
Se é possível mesmo fora da
“ordem da salvação”, vivenciar-se o amor-solidário na vida familiar, quanto
mais deve ser para aquelas pessoas que confessam Jesus Cristo como Senhor e
Salvador, aquele que é a maior manifestação desse amor, sinal da presença de
Deus entre todos os seres humanos!
FONTE: http://1re.metodista.org.br/conteudo.xhtml?c=2381
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