Ricardo Lengruber
Lobosco
O conflito entre israelenses e palestinos tem raízes bem
antigas. Entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX,
uma migração em massa de judeus de vários países para a Palestina provocou uma
mudança na demografia local. Majoritariamente árabe, a região - que até 1917
pertencia ao Império Otomano e depois, até 1948, foi um protetorado britânico -
passou a ter uma população judaica cada vez maior.
Em 1947, a ONU pôs em prática um plano de divisão do território
em duas partes: uma para os judeus e outra para os árabes. A insatisfação em
torno do mapa definido pela ONU gerou uma guerra civil entre os dois povos.
Um dos principais pontos de discordância era a existência de
projetos nacionalistas diferentes. Discordavam sobre o que seria uma Palestina
independente: uma Palestina árabe ou um Israel judaico? São projetos nacionais
que disputam o mesmo território, que desejam criar um tipo de comunidade
política em que o outro projeto não está incluído.
Gaza e Cisjordânia se mantiveram sob ocupação estrangeira árabe
até 1967, quando a Guerra dos Seis Dias, entre Israel e as nações vizinhas,
resultou na ocupação israelense da Faixa de Gaza e da Cisjordânia (incluindo a
parte oriental de Jerusalém).
A partir daí, Israel assumiu uma política de colonização de Gaza
e da Cisjordânia com judeus, por meio de assentamentos. Por vários anos, a ONU
considerou a ocupação dos territórios palestinos ilegal e determinou que Israel
retornasse às fronteiras pré-1967, o que tem sido ignorado pelo governo
israelense. Essa guerra (de 1967) é o núcleo da problemática mais recente. É o
empecilho da solução de dois Estados [Israel e Palestina].
Apenas em 2005, Israel decidiu retirar seus colonos e militares
da Faixa de Gaza, entregando sua administração à Autoridade Nacional Palestina
(ANP). Apesar disso, Israel continuou a controlar as fronteiras e o acesso
marítimo a Gaza.
Na Cisjordânia, pouco mudou já que a política de assentamentos
judaicos e a ocupação militar do território continuaram. Ainda hoje, grande
parte desse território palestino tem sua administração civil e militar
concentrada nas mãos de Israel.
Apesar da devolução de Gaza aos palestinos, o território passou
a ser o principal foco de problema do conflito israelense-palestino, já que, em
2006, o Hamas, movimento fundamentalista islâmico, venceu as eleições
parlamentares palestinas. Em seguida, o Hamas rompeu com o Fatah, organização
política e militar palestina, tomando o controle de Gaza, enquanto seu rival
político mantinha o controle sobre a Cisjordânia.
Visto como um grupo terrorista por Israel, pelos EUA e por
países europeus, o Hamas sofreu uma série de sanções por parte desses países. O
governo israelense ampliou a vigilância sobre Gaza, aumentando seu controle
sobre as fronteiras e restringindo a circulação de produtos e pessoas entre os
dois territórios. Desde então, houve uma série de confrontos abertos entre as
duas partes: o governo israelense e o Hamas.
Além dos confrontos abertos que resultaram em centenas de mortes
(na maioria, de palestinos), a relação entre israelenses e palestinos nas
últimas décadas tem sido marcada por atentados, conflitos entre militares
israelenses e civis palestinos, intifadas (revoltas populares) e tentativas
frustradas de acordos de paz.
Entre os principais pontos de desacordo estão: 1) a divisão de
Jerusalém, 2) a retirada dos colonos israelenses de terras palestinas, 3) o
retorno de refugiados das guerras árabe-israelenses a suas antigas terras e 4) o
reconhecimento da Palestina como Estado independente.
Nos últimos dias, tem-se acompanhado a intensificação do
conflito na Faixa de Gaza. Até o momento, mais de 260 pessoas morreram e 2 mil
ficaram feridas na sequência dos ataques iniciados em julho. A nova espiral de
violência foi desencadeada após o sequestro e homicídio, em junho, de três
jovens judeus na Cisjordânia (um ataque que Israel atribuiu ao Hamas, grupo
islâmico que controla a Faixa de Gaza) seguido da morte de um jovem palestino
queimado em Jerusalém por extremistas judeus. A partir daí, tiveram início os
lançamentos de foguetes do Hamas e os bombardeios de Israel.
O linguista judeu, radicado nos EUA, Noam Chomsky ajuda a
compreender a dor do momento: "Um bom retrato está disponível num relatório
da UNRWA (a agência da ONU para refugiados palestinos). As crianças palestinas
em Gaza sofrem imensamente. Uma vasta proporção é afetada pelo regime de
desnutrição imposto pelo bloqueio israelense. A prevalência de anemia entre
menores de dois anos é de 72,8%; os índices registrados de síndrome consuptiva,
nanismo e subpeso são de 34,3%, 31,4% e 31,45%, respectivamente. E estão
piorando. Quando Israel está em fase de 'bom comportamento', mais de duas
crianças palestinas são mortas por semana – um padrão que se repete há 14 anos.
As causas de fundo são a ocupação criminosa e os programas para reduzir a vida
palestina a mera sobrevivência em Gaza. Enquanto isso, na Cisjordânia os
palestinos são confinados em regiões inviáveis e Israel tomas as terras que
quer, em completa violação do direito internacional e de resoluções explícitas
do Conselho de Segurança da ONU – para não falar de decência."
O exército israelense, o quarto maior do mundo, mas o mais
moderno e sofisticado do todos, sabe a quem mata. Não mata por engano. Mata por
horror. As vítimas civis são chamadas de "danos colaterais". Em Gaza, de cada
dez “danos colaterais”, três são crianças. E somam, aos milhares, os mutilados,
vítimas da tecnologia do esquartejamento humano, que a indústria militar está
ensaiando com êxito nesta operação de limpeza étnica.
Não há inocentes em nenhum dos lados. De Israel, um governo
reacionário que entende como sua a terra e exclusivamente seu o direito, sem
falar numa população que apoia ou cala cinicamente perante o terror perpetrado
por seu governo; da Palestina, uma liderança extremista que tem como arma o
terrorismo clássico onde gente simples vira moeda de troca sem muito valor, com
muito sangue e horror.
Teologicamente, há quem pense em Israel como o legítimo filho da
promessa; e nos Palestinos como bastardos que não têm os direitos a que hoje
reclamam. Isso é equivocado. Ler a Bíblia sob essa ótica é reduzi-la e fazê-la
dizer para o mundo contemporâneo verdades que estão circunscritas a um outro
tempo. Anacronismo. A perenidade da Bíblia está na sua capacidade de nos revelar
o caráter de Deus: partidário dos que sofrem; solidário com os que morrem.
E, nesse pormenor, convém ler a história de Hagar (e seu filho
bastardo!) e descobrir que foi Deus quem foi salvá-la da morte no deserto,
depois de expulsa por Sara e Abrão (os pais legítimos!). Convém ler as histórias
do Egito opressor, de onde Deus fizera libertar os israelitas; mas é preciso não
se esquecer do mesmo Egito que foi refúgio para o pequeno Jesus e sua família
quando Herodes os ameaçava de morte.
Não há lugares, povos e pessoas absolutas na Bíblia. Há, isso
sim, a opção preferencial de Deus pelas vítimas que sofrem. Não importa seus
nomes ou "de que lado estejam". Se há vítimas, Deus está com elas. Sofre com
elas.
Eu creio assim: se hoje há um rosto para Deus no oriente médio,
esse rosto é árabe-palestino, porque é aí que está o sofrimento. Mas não apenas
aí.
Antes de sermos "descendentes" do povo de Deus (Israel), somos
discípulos de Jesus (que sofreu numa cruz como as vítimas desse mundo de
terror).
Como cristãos que ousamos acreditar num mundo de paz, creio
devamos nos unir em torno de ideias de humanização desse nosso tempo. Um clamor
- politicamente concreto junto a governos - pelo repúdio ao expansionismo
violento e violador do direitos humanos por parte de Israel e do Hamas talvez
seja um bom começo. Fato é que não há lado com razão; há pessoas morrendo
inutilmente. Isso precisa de um basta.
Não creio que Deus esteja desse ou daquele lado; apenas chora
cada criança que sofre. Está na cruz outra vez.